Leia crítica do álbum ‘Miragem’, de Valéria Custódio
Em fevereiro, O Diário deu detalhes sobre ‘Miragem’, o novo álbum da cantora mogiana Valéria Custódio, que agora já está disponível nas principais plataformas digitais, como o Spotify. Este repórter teve acesso antecipado ao material e produziu uma crítica sobre o disco. Confira: Voz que preenche tudo Imagine uma casa grande, com vários quartos […]
Reportagem de: O Diário
Em fevereiro, O Diário deu detalhes sobre ‘Miragem’, o novo álbum da cantora mogiana Valéria Custódio, que agora já está disponível nas principais plataformas digitais, como o Spotify.
Este repórter teve acesso antecipado ao material e produziu uma crítica sobre o disco. Confira:
Voz que preenche tudo
Imagine uma casa grande, com vários quartos e muitas portas. Mas falta cor e sem sentimento, como se ninguém morasse ali. Isso muda quando Valéria Custódio entra. Cantando e dançando, ela vai espalhando cores, das mais vibrantes às mais sóbrias, e assim preenchendo todos os espaços. Cada cantinho ganha vida, alegria, tristeza, vida. Assim é ‘Miragem’, o novo álbum dela. Mas diferente do que acontece no deserto, essa é uma miragem real, interpretada por uma artista, por uma mulher de verdade.
Ainda no portão desta casa imaginária ela começa cantando ‘Água Pra se Benzer’, faixa de abertura que não apenas dá o tom da obra como presta um serviço. Com sonoridade fortemente inspirada na cultura afro, Valéria rima sobre respeito e lança as primeiras cores, verdes de diferentes tons em um jardim em que vai jogando as flores de um tema que permeia todo o trabalho: o amor.
Com uma música recheada de brasilidade e que propõe um novo e mais humano olhar ao mundo, ela mostra a que veio. Mais do que isso, é assim que ela, corajosa, se expõe, por meio da arte. Entre ‘Púrpura’, o primeiro disco dela, e ‘Miragem’, se passaram quatro anos, tempo suficiente para que que se acerte e erre muitas coisas, aprenda outras tantas, experimente o choro e o sorriso.
É natural este processo de amadurecimento. E Valéria tomou a acertada decisão de transformá-lo em música, o que fica evidente na próxima, ‘Avesso’. Acompanhada de um piano muito bem marcado, ela fala de um amor que já não está mais ali e apresenta uma reflexão sobre o que agora fica na memória, para já não mais machucar.
Diverso, o amor está presente em diferentes formas ao longo da experiência. A sequência é ‘Basquiat’, em que a voz de Valéria, agora cantando em inglês, preenche outro cômodo da casa, com versos que referenciam Jean-Michel Basquiat, grafiteiro e pintor neo-expressionista estadunidense já falecido. Quando ela começa, diz ‘I close my eyes’ (eu fecho meus olhos), e a dica é que o(a) ouvinte faça o mesmo, para embarcar na viagem que é calma no início, mas não falha em trazer potência suave e marcante.
Sempre presente em ‘Miragem’, o amadurecimento se torna outra vez evidente em ‘Desilusão’. Essa música é a melancolia da vida adulta misturada com a brasilidade sonora e também de caráter, já que a interlocutora canta sobre as próprias amarguras. Em versos como “amei uma fantasia, mas na hora não sabia que o coração ia sangrar”, o clima dançante vai crescendo devagar. É como uma reflexão em diferentes estágios que culminam no reconhecimento do que aconteceu, abrindo espaço para o reconhecimento – e a dança, porquê não?
Aí vem então a mais grata surpresa de todo o álbum. Enérgica, suingada, sensual. Assim é ‘Ela’, que fala abertamente sobre um “amor platônico em pedestal”. É como se a música rebolasse, se remexesse. Há calor aqui, que envolve, que abraça, que seduz, que joga cor vermelha a um dos quartos da casa.
Chega então a hora de uma ‘Faxina’, e Valéria volta, agora em voz e violão, a refletir sobre a vida. Nesse ponto, apresenta uma letra recheada de autoconhecimento, de quem viveu muitas coisas. E a mensagem se encaixa muito bem agora, quando paira no ar a êxtase após um longo período de isolamento social, que permitiu um também longo e profundo olhar interno.
Outra coisa de adulto é o sexo, que está presente em ‘Nó’, como um tempero que agrega bastante. “Eu digo e repito, o conflito entre nós dóis não é bom, só faz o amor ficar menor. Somos tão felizes a sós, quanto estamos entre lençóis. Quando você me beija daquele jeito, minha cabeça dá um nó”. É preciso dizer algo mais?
E se é para falar de amadurecimento, há que se dizer: pedir ajuda ao tempo é um recurso evidentemente adulto. E é exatamente o que Valéria faz em ‘Tempo’: “peço ao tempo sabedoria e ajuda para discernir”. O violão que acolhe, que traz sonoridade semelhante ao sertanejo, combina muito bem.
Se tem algo de sertanejo, pode ter samba. E tem! ‘Odoya’ começa essencialmente instrumental, e os instrumentos parecem cantar, sugerindo um novo e diferente mergulho interno. A cada segundo que se passa, fica mais fácil acompanhar a música com uma leve batida de mãos, que não demora a se torna uma empolgada levada de samba. E a conclusão amarra tudo, deixando claro que o pacote completo, do início ao fim, tem um tema só, o amor: “me lavei do que não presta e me aliei ao verbo amar”.
A “conclusão” vem entre aspas. Isso porque tem mais. ‘Voraz’, a próxima e última música, não foi originalmente pensada para integrar ‘Miragem’. Composta para ser a música tema do filme ‘Nunca Estarei Lá’, essa música arrepia. É claro que a voz de Valéria é potente, e a sonoridade e melodia também. Mas há mais. Saber que ‘Voraz’ não fazia parte do plano original arrepia os pelos do corpo inteiro.
Como pode uma música, que foi escrita para compor a trilha de um filme, não precisar de retoque algum para encaixar perfeitamente aqui? Quando terminou de colorir a casa, Valéria sentiu que o imóvel precisava de uma edícula, e tratou de a construir, novamente, com mistérios da mente adulta, como os versos “Um segredo voraz que me corrói entranha e me tira a paz […] E num legado baseado em luta e classe você vai permanecer presente” […] Eu não pude mais esconder, não vou mais ficar onde eu não puder estar eu mesma”.
Vale ouvir e refletir.