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Chacinas completam seis anos sem esclarecimentos; missa neste domingo lembra as mortes

Ao completar seis anos da Chacina do Caputera, as mães de Christian Silveira Filho, Ivan Marcos dos Santos Souza e LucasTomaz de Abreu, executados friamente por muitas balas disparadas por quatro homens encapuzados, clamam por justiça e o esclarecimento sobre a autoria do crime que as uniu, desde a noite de 24 de janeiro de […]

22 de janeiro de 2021

Reportagem de: O Diário

Ao completar seis anos da Chacina do Caputera, as mães de Christian Silveira Filho, Ivan Marcos dos Santos Souza e LucasTomaz de Abreu, executados friamente por muitas balas disparadas por quatro homens encapuzados, clamam por justiça e o esclarecimento sobre a autoria do crime que as uniu, desde a noite de 24 de janeiro de 2015. À reação dos familiares desses três jovens – que usaram as ruas e a Imprensa local e nacional para cobrar o fim da série de 13 crimes que atemorizou a periferia de Mogi das Cruzes entre 2013 e 2015 – é creditada a identificação, prisão e condenação dos ex-policiais Fernando Cardoso Prado e Vanderlei Messias Barros Messias. 

A dramática situação vivida por essas vítimas é que, justamente esse caso, até o presente momento, não foi a julgamento e nem se sabe quem seriam os assassinos.

Com fé inabalável em Deus e crente de que há vida após a morte, Lucimara dos Santos diz que a vida nunca mais será igual. “Alguns dias são normais e há dias que eu fico muito mal. Não me conformo com a injustiça porque os nossos filhos não estavam em um lugar errado, como costumo ouvir. Estavam com os amigos, em frente da casa de um deles. Errados são os assassinos, errado é quem mata covardemente. A corporação policial não pode ser escudo para quem é assassino. Bandido é bandido. E isso não quer dizer que todo policial é assim. Eu, sinceramente, confio na Polícia, mas não entendo a proteção dada a um assassino”.

Voz convicta desde o enterro de Christian, que tinha 17 anos, trabalhava em um supermercado e sonhava reformar um carro presenteado pelo padrinho, Lucimara afirma que nunca se sentiu ameaçada, pela mobilização que levou à denúncia sobre a organização criminal mantida por policiais. “Nunca houve ameaça e, na verdade, eu até queria que me matassem, seria um favor porque a dor era muito grande, mas eu também sentia que precisava honrar o meu filho, que não era um ‘nóia’, e nem um bandido. As pessoas precisam saber disso”, repete, emocionada.

Dezembro e janeiro são meses do ano mais dolorosos para a técnica em enfermagem que foi uma das responsáveis por reunir as mães de outros jovens mortos naquele período e fundar o grupo Mães Mogianas, um braço do Mães de Maio. “A nossa luta pode ter esfriado, porque a gente vai se cansando, mas não acabou. Combinamos nesta semana para voltar a falar com o delegado, o doutor Rubens (José Angelo, titular do Setor de Homicídios e Proteção à Pessoa (SHPP) de Mogi das Cruzes) para entender o motivo de ainda não termos a conclusão desse inquérito”, diz. A O Diário, o delegado Rubens, sem conceder entrevista, disse apenas que os inquéritos estão em andamento.

Uma resposta ouvida há seis anos pelas mães. Na noite da Chacina do Caputera, também foram mortos, em Jundiapeba, a vítima mais nova da série, Breno Santos Vale, de 14 anos, e Celso Gomes, de 28 anos. Em comum, as execuções tinham o modo operacional dos criminosos, que chegavam em carros populares e em uma moto e dispararam vários tiros em pessoas encontradas nas ruas, entre o final da noite e a madrugada.
Intrigam as pistas abertas nos depoimentos dos sobreviventes, pinçados dos processos. Lucimara destaca que naquela noite, um carro da Polícia Militar parou em frente ao grupo de jovens e um dos policiais dissera “vocês vão ficar aí? Hoje, vai ter!”. Alguns minutos depois, a história terminou com os três amigos mortos e Robson José e Márcio da Silva feridos (veja matéria nas páginas seguintes). “Há uma ligação forte em tudo isso porque nos bairros, as pessoas comentavam sobre um policial Cardoso, que estaria envolvido nas mortes. Mas, não foi apenas ele e o Messias, porque a história não bate. Em todos os bairros há ruas, com pontos de droga. Todas as pessoas, então, são bandidas? Eles matavam qualquer um, sem saber quem era quem. Matavam por prazer”.

O inquérito do Caputera é um dos mais densos, com análises periciais, depoimentos, etc. “Não consigo entender o que mais se espera para levar a julgamento. Vão esperar o Cardoso confessar? Ele alegou inocência sempre. Em um depoimento, ele teve a coragem de dizer que ‘se pudesse dava um filho para cada uma das mães’. Imagina como é duro ouvir isso de quem foi condenado por matar nossos filhos”.

 

Missa é pouco, mais é um alerta sobre a violência policial

Dom Pedro Stringhini afirma que manter a memória dos jovens executados é meio de dizer um basta à criminalidade 

No primeiro ano após a Chacina do Caputera, o bispo diocesano de Mogi das Cruzes, dom Pedro Luiz Stringhini, celebrou uma missa na mesma rua, em frente à casa de Ivan Marcos dos Santos Souza, jovem que estava com os amigos Christian Silveira Filho e Lucas Tomaz de Abreu, e foi alvejado com vários tiros disparados por quatro homens que estavam em um gol cinza. Os três não tiveram chance de socorro. Dois outros amigos, que aguardavam a chegada de esfirras compradas para comemorar a visita de um colega, que vivia no Mato Grosso, foram feridos, e sobreviveram (veja, ao lado, o resumo das chacinas ocorridas entre 2013 e 2015 na periferia de Mogi).
Seis anos depois, neste domingo (24), às 19 horas, na paróquia de São João, no Mogi Moderno, o religioso cumpre um rito prometido naquela celebração, à comunidade do Caputera e da Vila Natal: não deixar o tempo e a indiferença apagarem a memória e as lembranças dos jovens mortos em situação de violência policial. “Uma missa é pouco, mas é um alerta sobre o que está acontecendo com as camadas mais vulneráveis, os jovens pobres e a população negra e das minorias, que têm enfrentado a violência social e policial. É um pequeno gesto mantido pelas mães e familiares das vítimas, que nos dá oportunidade de pedir o fim da violência e a construção da cultura da paz, do entendimento entre as diferenças”.
Dom Pedro comentou que a mobilização das famílias dos jovens foi a principal resposta da sociedade ao que a cidade viveu naqueles dias. “Foram elas, e também a professora Inês Paz, que alertaram as autoridades sobre o que estava acontecendo”.
O religioso afirmou que as injustiças e as desigualdades sociais, infelizmente, têm crescido e abalado a população mais empobrecida, desde a chegada ao poder do atual “desastrado” governo.

“Nós, estamos acompanhando os jovens e crianças ainda mais vulneráveis. Conversávamos neste momento com responsáveis pela Pastoral da Criança e vemos miséria crescer, não apenas por causa da pandemia, mas por questões sociais e políticas que não atendem aos pobres, negros, indígenas e a questão da terra. Nós temos um governo, infelizmente, mais preocupado em armar as pessoas, do que cuidar das pessoas”, disse.
Sobre a violência mais uma vez estampada na região de Mogi das Cruzes na quinta-feira, quando em um confronto policiais, três jovens foram mortos, o líder da Igreja Católica afirmou que essa é uma situação complexa, “que não tem o amparo, ainda, da sociedade, para ser modificada”.

“A Polícia nem sempre é vista como quem deveria defender a população. Esse é o resultado desse atual embate policial que assistimos”, disse, acrescentando que “há de se preservar, sempre, em busca da pacificação”, como, aliás, seguem fazendo as mães da chacinas do Caputera e de Jundiapeba.

 

Mães mogianas ainda vive

Inspirado no Mães de Maio, um grupo de mulheres que se uniram para denunciar as 564 mortes ocorridas no Estado de São Paulo – sendo 70, apenas em Santos, em uma série de ataques que durou do 12 a 21 de maio de 2006 entre agentes do Estado e de uma facção criminosa -, o Mães Mogianas ainda resiste. Se não oficialmente com as reuniões e ações conjuntas, parte das mães dos jovens e homens mortos nas chacinas mogianas mantém os laços que as uniram: a dor e a revolta pela falta de respostas para os crimes.

Além das mães, teve um papel de moderação e persistência na criação do grupo, a professora Inês Paz, hoje vereadora eleita pelo PSOL.

Inês foi professora de alguns dos jovens mortos. A ela se deve a articulação de encontros com delegados e promotores durante todo esse tempo, além da reunião dos dados dispersos entre os órgãos responsáveis por investigar as execuções.
A vereadora afirma que a luta pela reparação dos danos morais não acabou. “Enquanto o caso não é julgado e acontece a condenação, as famílias não podem processar o Estado pelo que fizeram os ex-policiais”, conta. Para Inês, a burocracia e a lentidão do poder judiciário desfavoreceram a luta das mães e familiares. “Até hoje, não tivemos apoio, por exemplo, da Defensoria Pública local, diferente do que aconteceu quando fomos a São Paulo, mas o processo precisa seguir por Mogi”, reclama, afirmando que pretende dar continuidade às cobranças, agora, no papel de vereadora. 

 

Ontem, protestos

Basicamente as mães, avós, tios, primos e namoradas dos jovens mortos na Chacina do Caputera realizaram o primeiro protesto entre o Largo do Rosário e a porta da Catedral de Santana. Foi após esse ato público e as entrevistas à imprensa local que a Delegacia Seccional de Mogi das Cruzes revisou um posicionamento adotado até então – o de não tratar como uma série as execuções iniciadas em 2013 e já atribuídas, na periferia, a policiais militares. Depois das ruas, as mães passaram a percorrer gabinetes das polícias Civil e Militar e o Ministério Público. O pedido do grupo era: quando vão parar de matar os jovens mogianos? 

 

Hoje, dúvidas

“Sabe um filme, com tiros, gritos, latidos de cachorros, e a gente sendo segurada para também não morrer? Foi assim, naquela noite”, compara Joseana dos Santos Souza ao reunir  recortes dos instantes da pior noite de sua vida, quando ouviu os mais de “40 tiros” acabarem com a vida do filho, Ivan dos Santos Souza, e dos amigos Christian Silveira Filho e Lucas Tomaz de Abreu, em frente à casa onde morava na rua Waldir Soares Carrião, no Caputera.

Joseana tornou-se cética. “Eu não acredito em mais nada. Não tenho mais religião”, diz, ao explicar porque não pretendia ir à missa pelos seis anos da morte do filho, neste domingo (24). “A gente fica revirando, revirando essa história e não dá em nada”.

Cansada da demora por respostas, ela sempre rememora, ao longo desse período, alguns dos resultados das investigações e de conversas com sobreviventes sobre a noite em que um carro policial primeiro, passou avisando que haveria mais “pipocos”, ou seja, a vinda dos executores, e algum tempo depois, a chegada de um carro com quatro ocupantes. “Eles começaram a atirar de dentro do carro, depois saíram, para dar mais tiros. Foram mais de 40, e eu estava assistindo à televisão, e minha filha pedia para que eu não saísse. Foi um pesadelo, os cachorros latiram muito, um barulho terrível. Um filme de terror”.
A partir daí, as peças não foram novamente encaixadas, na opinião de Joseana. “Na Corregedoria da Polícia, nos disseram que as testemunhas falaram sobre o aviso dado pela Polícia. Quem estava nesse carro, da Polícia, como sabia o que iria acontecer? Não é também responsável?”.

Ela também lembra que, em uma das investigações, a presença do ex-policial Vanderlei Messias, no Caputera, não foi confirmada, o que não fecha o mistério sobre os participantes das execuções. “Então, se ele não estava, quem foi que matou os amigos?”.

Descrente da Justiça, ela não se contenta com a diferença de tratamento dada pelo poder judiciário aos condenados e os familiares das vítimas. “Nos júris, os cuidados eram com a mãe do (ex-policial) Cardoso. Nós, as mães, não podíamos falar nada. Eles são os certinhos, nós, os errados. Veja quantas pessoas continuam sendo mortas por policiais”.

 

Acaso

Hoje, com 26 anos, se estivesse vivo, Ivan estaria casado, e talvez com um filho, na opinião da mãe, uma trabalhadora autônoma de 50 anos, que cuida agora da filha, que adquiriu problemas emocionais desde o verão de 2015.

Ivan era estudante, e tinha uma namorada, que residia na Vila Brasileira. “Ele pouco via os amigos porque ficava mais na casa da namorada. Naquele dia, foi uma exceção porque um amigo veio do Mato Grosso e eles decidiram comemorar, comer as esfirras. Ninguém ali tinha droga ou armas”.

Apesar da desilusão com a morosidade da Justiça, Joseana acredita que a união das mães fez cessar as chacinas. “O delegado seccional só admitiu que um caso estava ligado ao outro, após os protestos”, lembra.

 

Carros e moto

Nas cenas dos crimes, havia a presença de diferentes carros, o que leva a supor que mais pessoas estavam envolvidas (um Gol prata, um Ford Ka, um Fox vermelho e um Corola preto). Esse último carro, inclusive, sempre era visto pelas ruas do Caputera. Em algumas das chacinas, há relatos da presença de uma moto. 

 

Inquéritos ainda estão tramitando 

O Diário solicitou informação ao Ministério Público sobre o andamento de três dos casos dos bairros, ainda sem julgamento. Recebeu resposta dada pelo promotor José Floriano Alkmin Lisboa, dizendo o seguinte: “os inquéritos ainda tramitam na Polícia”, “os processos físicos estavam com a Polícia e o juiz”, e as respostas sobre o envolvimento de outros agentes públicos dependem do fim das apurações.

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