Merendeira que salvou crianças na Raul Brasil sonha em se tornar professora
O Diário dá uma pausa nas notícias de mortes para contar uma história de vida: a da merendeira e mãe de 3 filhos, Silmara Moraes, 51 anos, que depois de ter ajudado a salvar pelo menos 50 alunos na maior tragédia de Suzano, inicia o sonho de exercer uma das profissões mais nobres: ser professora. […]
Reportagem de: O Diário
O Diário dá uma pausa nas notícias de mortes para contar uma história de vida: a da merendeira e mãe de 3 filhos, Silmara Moraes, 51 anos, que depois de ter ajudado a salvar pelo menos 50 alunos na maior tragédia de Suzano, inicia o sonho de exercer uma das profissões mais nobres: ser professora.
Na adversidade, a merendeira Silmara Cristina Silva de Moraes, 51 anos, buscou forças para conseguir realizar o sonho acalentado desde a infância. Após vivenciar o massacre na escola estadual Professor Raul Brasil, em Suzano, no dia 13 de março de 2019, que deixou 10 mortos e 11 feridos, ela decidiu dar uma guinada na vida, já que considera que, como sobrevivente da tragédia, teve a chance de renascer.
“Todo mundo que estava na escola naquele dia teve sequelas e cicatrizes, algumas visíveis e outras invisíveis, mas a grande maioria também buscou forças para continuar lutando e agradecer pela oportunidade de sair com vida daquela tragédia, porque todos tiveram medo de morrer lá. Muitos alunos, principalmente os que foram baleados, voltaram a estudar, conseguiram passar de ano e vários deles concluíram o Ensino Médio, lutando pela realização dos sonhos também daqueles que perderam a vida. Então, diante de tudo isso, percebi que estava na hora de ir atrás dos meus objetivos e colocar em prática os planos que há anos ficaram engavetados”, revela Silmara.
Foi assim que, após três décadas de dedicação à casa e aos filhos, agora já adultos, ela encontrou motivação e incentivo para retomar os estudos com o obejtivo de alcançar a profissão que sempre desejou seguir: o magistério.
Para isso, no início deste ano, a merendeira se matriculou no primeiro semestre do curso de Pedagogia, no polo de Guaianazes, onde mora, do Centro Universitário Unilins. Ela optou pela modalidade Educação a Distância (EAD), até mesmo por conta da pandemia de Covid-19, que impede a realização de aulas presenciais, e conta com o apoio do marido, Paulo Fernandes de Moraes, 51, atualmente desempregado e com quem é casada há 30 anos, e dos três filhos: Marcos Paulo, 27, dono de barbearia; Aline Cristina, 24, formada em Gestão Financeira; e Agatha Caroline, 20, estudante de Fisioterapia. “Foi uma decisão tomada em família, com todos me apoiando e me dando muita força para recomeçar os estudos”, diz.
Afinal, os quatro sabiam que Silmara, desde criança, tinha como diversão preferida brincar de ser professora e, nas aulas que comandava na escola dominical para crianças da igreja que frequenta, sentia a vontade de buscar especialização na área educacional.
Mas se formar para seguir a profissão de educadora é apenas uma parte de seu novo projeto de vida. Em seguida, assim que já estiver lecionando, ela pretende continuar estudando, desta vez, no curso superior de Serviço Social. “Não vou parar. Ainda quero ajudar mais as pessoas. Gosto disso e me sinto realizada”, revela, contando que pretende atuar na área do ensino voltado a pessoas com necessidades especiais.
“Tenho uma grande paixão pelos recursos especiais e acho muito trabalho este bonito com estas crianças que, ao mesmo tempo em que devem conviver com todos, precisam de mais atenção na hora da alfabetização. Em contato com crianças especiais, sinto que, às vezes até por falta de conhecimento e instrução, as outras olham de forma diferente para elas. Não podemos deixar isso acontecer. Elas são normais, como as outras. Temos que introduzir verdadeiramente estas crianças no ensino, já que, por serem especiais, acabam sendo excluídas do convívio com as demais, e gostaria que todos percebessem que elas têm muito a nos ensinar também”, acrescenta.
Na avaliação de Silmara, conseguir transmitir conhecimento às pessoas e vê-las crescendo por meio do saber é compensador, por isso, o magistério e os profissionais da área deveriam ser mais valorizados no país.
“É uma profissão linda, que merece ser aplaudida de pé por todos, porque se hoje temos presidente, governadores, médicos, juízes, advogados e todos os demais profissionais, é porque eles passaram pelas mãos de professores. Tudo começa na educação, por isso esta deveria ser uma profissão majoritária no país e exibida com êxito. Vejo professores que têm muito orgulho da carreira e amor pelo que fazem, então, ajudam não só transmitindo conhecimento, mas também na formação do caráter de seus alunos. É algo maravilhoso, que faz a diferença na vida destas pessoas e na sociedade”, destaca a paulistana, que mora em Guaianazes, na Zona Leste de São Paulo, e há 12 anos viaja todos os dias no trem de subúrbio para trabalhar na escola de Suzano.
Outro projeto que não sai da mente de Silmara é conseguir que o marido também retome os estudos. Como funcionário do Colégio Metodista, ele tinha bolsa e estava cursando a faculdade de Direito, mas com a pandemia, foi demitido. “Sem a bolsa, não teve condições de continuar o curso pagando pelas mensalidades, mas assim que melhorar a situação, vou incentivá-lo a voltar, porque agora, mais do que nunca, sei o valor que os estudos têm na vida de todas as pessoas”, reforça.
Na juventude, Silmara conta que já pretendia iniciar um curso superior, como a irmã, que se formou professora, mas não teve condições. “Eu me casei com 23 anos e, antes disso, trabalhei em uma gráfica. Mas naquela época, tudo era muito mais difícil do que hoje, então, não deu para fazer a faculdade. Após o casamento, foi minha opção ficar cuidando da casa e dos filhos, até que, há 12 anos, quando eles já estavam crescidos e bem direcionados na vida, prestei concurso do Governo do Estado para merendeira, passei e voltei a trabalhar fora. Mas nunca deixei morrer dentro de mim esta vontade de continuar estudando e me formar professora”, diz.
Se a vocação para a educação vem desde a infância, o massacre na escola Raul Brasil reacendeu o desejo da busca pela formação profissional para atuar na área. “Aquele dia foi horrível. Pensei que iria morrer e não sei como tive forças de chamar, com minhas companheiras de trabalho, os alunos que estavam no pátio para se abrigarem na cozinha, onde foram salvos do tiroteio. Mas isso me fez ver a vida como uma nova oportunidade. Eu nasci de novo e não posso perder esta chance que Deus me deu”, conclui.
O reconhecimento
A primeira profissional da Educação a receber a vacina contra a Covid-19 no Estado de São Paulo foi a merendeira Silmara Cristina Silva de Moraes, da escola estadual Professor Raul Brasil, em Suzano. No último sábado (10), o governador João Doria (PSDB) veio à cidade acompanhar a aplicadação da 1ª dose do imunizante na profissional, como forma de reconhecimento à coragem de Silmara, que no dia do massacre na escola, abrigou cerca de 50 alunos na cozinha para protegê-los.
“Estava começando um grande tiroteio”
No texto abaixo, a merendeira Silmara Cristina Silva de Moraes relata o drama vivido no dia do massacre na escola estadual Raul Brasil, em Suzano
Silmara Cristina Silva de Moraes
Na manhã do dia 13 de março de 2019, um dia normal como os outros, eu e a Lizete chegamos por volta das 6h45 à escola, onde entramos falando que o ano começaria a partir daquele momento, pois era a semana após o Carnaval.
Entramos, nos trocamos e fomos fazer nossos afazeres. Às 8 horas, chega a Sandra, que é a outra cozinheira e, às 9h30, hora do intervalo, começamos a servir os alunos.
Por volta de uns 10 minutos em que já estávamos servindo, começou um alvoroço grande de alunos, todos gritando, desesperados, mas nós não sabíamos ainda o que estava acontecendo.
Porém, logo começamos a escutar os tiros e, de momento, pensamos que eram bombinhas, mas não eram. Estava começando um grande tiroteio, onde vários alunos foram alvejados e eu apressadamente, junto com minhas amigas, começamos a fechar a portinha da merenda. Foi aí que eu abri a porta gritando para os alunos correrem para dentro da cozinha e aos poucos fui fechando a porta.
Com muito temor percebi que estávamos vulneráveis à janela, então puxei o freezer e a mesa e deitamos atrás dela.
Paarecia uma eternidade, até que um policial bateu na porta. Gritamos muito neste momento, pois pensávamos que eram os assassinos. Eu me levantei, abri a porta e ouvi os policiais dizerem para sairmos e não olharmos para o chão.
Mas não tinha como não olhar as barbaridades que estavam do lado de fora. Logo vimos a Eliana, caída no chão, muito sangue e a coordenadora e os outros alunos que estavam na entrada. Em seguida, ficamos sabendo o que estava acontecendo.
Vimos que se tratava de um massacre, que até hoje nos causa dor, e saudade daqueles que se foram. Quando falo ou penso no que aconteceu, volta novamente a mesma sensação daquele dia.