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Tolerância, mente e corpo ativo: a receita do expedicionário mogiano que viveu 101 anos

Considerado o último expedicionário mogiano Paulo Pereira de Carvalho, que faleceu no final de semana e foi sepultado nesta segunda-feira (17) por familiares e amigos, concedeu à jornalista Carla Olivo, uma das entrevistas para a série de perfis publicados por O Diário, que ajuda a resgatar a história e o modo de viver dos mogianos […]

18 de abril de 2023

Reportagem de: O Diário

Considerado o último expedicionário mogiano Paulo Pereira de Carvalho, que faleceu no final de semana e foi sepultado nesta segunda-feira (17) por familiares e amigos, concedeu à jornalista Carla Olivo, uma das entrevistas para a série de perfis publicados por O Diário, que ajuda a resgatar a história e o modo de viver dos mogianos e da cidade nas útlimas décadas. Carvalho foi comerciante e um dos soldados que representou Mogi das Cruzes e o Alto Tietê na Segunda Guerra. 

A entrevista que O Diário republica é resultado de uma conversa ocorrida em 2004, quando o cozinheiro e dono de restaurante tinha 82 anos e já chamava a atenção pela vitalidade. Ele bem-viveu outros 19 anos, como atestam amigos mais próximos, que participavam de encontros regados à música, conversas sobre o passado e o presente, boa comida (era excelente cozinheiro) e cervejas e destilados.

Reveja, a seguir, a entrevista de Paulo Pereira de Carvalho. Na conversa, ele relata sua chegada a Mogi das Cruzes, a cidade que viu creser, os difíceis tempos da guerra na Itália e a receita da longevidade. Acompanhe a seguir:

Mente e corpo em Movimento

PERFIL

Nome: Paulo Pereira de Carvalho

Nascimento: Cristina (MG)

Estado civil: viúvo

Formação: Supletivo – Liceu Braz Cubas

Trabalho: comerciante (30 anos) e tesoureiro do INSS (20 anos)

Hobby: cozinhar, viajar, ler e praticar esportes

CARLA OLIVO

“Mente e corpo em movimento”. Seguindo este lema, o aposentado Paulo Pereira de Carvalho, 82, exibe uma vitalidade de causar inveja aos mais jovens. Nascido em Cristina (Minas Gerais), ele passou a infância em Lambari, onde ajudava os veranistas a carregarem suas malas para colaborar no sustento da família. Aos 13 anos chegou em Mogi das Cruzes para assumir o primeiro emprego: balconista na saudosa Leiteria Glória. Sua história de trabalho estava apenas começando. Em junho de 1944 embarcou, convocado pela Força Expedicionária Brasileira (FEB) para a Itália, onde participou dos combates da 2ª Guerra Mundial. De volta ao Brasil, aos 24 anos, montou o restaurante Monte Castelo, em São Miguel Paulista. Em 1950 passou no concurso para tesoureiro do INSS, cargo que exerceu durante 20 anos, sempre conciliando com a Pizzaria Maracanã – que comandou por 30 anos – e o Terraço Paulo – dirigido por ele de 1982 a 1986. Casado com a professora Haydee Brasil de Carvalho, que durante 30 anos lecionou no Coronel Almeida, ele ficou viúvo em 1995 e há quatro anos namora Conceição Zendron. É pai de Beth, Cristina, Mara Silvia e Paulo Henrique e avô de André, Renato, Gustavo, Cristiane, Mariane, Paulo Henrique e Luiz Henrique. Em entrevista a O Diário, Carvalho relembra as histórias vividas na Cidade.

 

O Diário – Por que o senhor veio para Mogi?

Paulo Pereira de Carvalho – Nasci em Cristina, mas aos 6 anos minha família se mudou para Lambari, uma cidade turística famosa por suas águas minerais, onde eu e meus cinco irmãos (José, Zito e Geraldo – que já faleceram – e Alaíde e Maria) trabalhávamos como guias de charreteiro, ou seja, ajudávamos os veranistas a carregar suas malas e, com isso, ganhávamos uns trocados para colaborar em casa. Fiz isso dos 6 aos 13 anos, quando meu primo Nhozinho (José Noronha Ferraz), que era fazendeiro em Caçapava, abriu a Leiteria e Sorveteria Glória em Mogi. Então, vim para cá com ele. Tinha iniciado os estudos em Minas e aqui concluí o Supletivo no Liceu Braz Cubas. De 1935 a 1940, fui balconista da famosa Leiteria Glória, sendo que depois, o restante da minha família também veio para Mogi e fiquei trabalhando dois anos com meu irmão Zito, que inclusive, foi vice do prefeito Chico Lopes (Francisco Ferreira Lopes). Ele tinha o Hotel Internacional, perto da Estação Ferroviária, na Praça Sacadura Cabral.

O Diário – Como era a Cidade quando o senhor chegou aqui?

Carvalho – Era muito tranqüila e todo o movimento de jovens se concentrava no Cine Parque, na Rua Dr. Ricardo Vilela, onde freqüentávamos as matinês todos os domingos à tarde.

O Diário – E o trabalho na Leiteria?

Carvalho – Além do Cine Parque, outro ponto de encontro da mocidade era a Leiteria Glória, onde trabalhava. Lá se reuniam rapazes, moças e famílias porque tínhamos de tudo no amplo salão que ficava na Rua Dr. Deodato Wertheimer, onde hoje funciona a Lojas Arapuã. Havia desde café, sorvete, sucos e chope a bilhar.

O Diário – Quando ocorreu a convocação para a 2ª Guerra Mundial?

Carvalho – Em outubro de 1942 recebi a convocação da Força Expedicionária Brasileira (FEB) e fui para Caçapava, Taubaté e depois ao Rio de Janeiro, onde passei por seis meses de treinamento e, em junho de 1944, embarquei com os outros pracinhas brasileiros para Nápoles, na Itália. Fazia parte do 1º escalão e era do Pelotão de Fuzileiros. Então, durante todo esse tempo, sempre soube que iria para a Guerra, mesmo porque, quando fomos convocados recebemos um tipo de crachá de identificação contendo meu nome, RG e tipo sangüíneo. Lembro que quando acontecia de uma pessoa morrer, este crachá retangular era colocado em cima do fuzil para ser identificado.

O Diário – Como foi a experiência de ter participado da Guerra?

Carvalho – Chocante demais, mesmo porque partimos sem saber se iríamos voltar. Porém, também teve o lado bom da história porque ganhamos experiência e naquela época, o Governo depositava uma boa quantia em dinheiro para nós. Quando voltei, peguei o que corresponderia a R$ 100 mil nos dias de hoje e montei um restaurante. Foi aí que consegui fazer meu pé de meia. Tinha 20 anos quando fui convocado e, ao retornar da Itália, estava com 24, tendo passado um ano participando diretamente da Guerra.

O Diário – O senhor perdeu muitos amigos nos combates?

Carvalho – Muitos, mas a morte do Hamilton Silva e Costa, que fez o ginásio em Mogi e era jogador do União, foi a mais marcante.

O Diário – Há outras histórias que ficaram marcadas desta época?

Carvalho – Eu era mensageiro do Pelotão de Fuzileiros e tinha como função levar os prisioneiros de guerra e também os feridos ao Batalhão. O problema é que nunca fui bom de direção e tenho uma grande deficiência nisso. Uma vez, tomamos um morro e prendemos dois alemães, que deveriam ter 17 anos e estavam muito assustados porque diziam que os brasileiros não faziam prisioneiros e sim os matavam. Peguei minha carabina automática e pedi que fossem andando na frente, mas eles olhavam para trás a toda hora horrorizados e pediam ‘no caput’, ou seja, que eu não os matasse. Os dois até me deram um cigarro africano, que era horrível, mas para quebrar aquele clima, resolvi fumá-lo com satisfação. Numa encruzilhada, andando pelo meio das castanheiras, indiquei que eles deveriam seguir um caminho à direita e os dois mesmo me alertaram que os alemães é que estavam naquela direção, e então, eu deveria levá-los pelo caminho inverso. Se não fossem eles, os teria devolvido aos próprios alemães, ao invés de levá-los ao nosso Batalhão. Isso tudo porque tinha dificuldades de direção. Chegando ao Batalhão, encontrei amigos de Mogi como o Milton Alves, Geraldo Cunha Melo, José Cursino dos Santos, João Rodrigues de Melo e Francisco Salustiano.

O Diário – Quais as principais lições que o senhor trouxe da Guerra?

Carvalho – Aprendi a compreensão e que os homens deveriam ter mais tolerância. Vimos muita fome na Itália e, inclusive, ajudávamos o povo de lá, que hoje está rico, dividindo nossas latinhas de comida com aquelas pessoas. Esta lição que aprendemos durante a 2ª Guerra foi muito dura.

O Diário – O que o senhor fez depois que voltou da Guerra?

Carvalho – Voltei em 1945 e montei o Restaurante Monte Castelo, em São Miguel Paulista, onde morei durante cinco anos. Depois, em 1950, vim para Mogi, fiz concurso e fiquei como tesoureiro do INSS durante 20 anos. Neste tempo, montei a Pizzaria Maracanã, que funcionou por 30 anos. Paralelamente, de 1982 a 1986, também tive o Terraço Paulo, na Rua Dr. Ricardo Vilela, que contava com música ao vivo e recebeu convidados como Altemar Dutra, Ângela Maria, Nelson Gonçalves e Francisco Egídio. Sempre gostei de lidar com o público e esta foi uma atividade que desenvolvi com prazer, tendo como clientes muita gente que freqüentou a Leiteira Glória nos tempos em que era balconista.

O Diário – O senhor lembra histórias desta época?

Carvalho – Houve várias, mas já faz muito tempo. Lembro de uma vez em que após a apresentação do Altemar Dutra, ficamos tão empolgados que sentei junto com ele e seu empresário em uma mesa e tomamos sozinhos um litro de uísque.

O Diário – Depois da aposentadoria, o que o senhor passou a fazer?

Carvalho – Não quis mais saber do comércio e passei a desfrutar a vida, na minha casa no Socorro e na praia da Cocanha, no Litoral Norte, para onde adoro ir com minha namorada Conceição Zendron, que costumo chamar de ‘My Love’. Também vamos muito à Riviera de São Lourenço, onde a filha dela tem casa. Apesar de estar aposentado, jamais parei. Acordo às 7 horas e por volta das 9 horas, passo na casa da Conceição para nossa caminhada. Depois, vou para casa e faço mais meia hora de ginástica e meia hora de natação. Aliás, aprendi a nadar sozinho, nos lagos de Lambari, onde passei a infãncia. Com este ritmo de vida, além de manter a saúde em dia, me sinto bem. Sempre tive muita disposição e isso vem da boa cabeça, mesmo porque, sempre li bastante e tenho uma biblioteca com cerca de 200 livros em casa, sendo que os meus preferidos, são os de literatura e romance, além de Psicologia. Vira e mexe, quando não estou fazendo nada, tenho um livro em mãos.

O Diário – Este é o segredo para ter vitalidade?

Carvalho – Procuro manter o corpo e a mente em movimento e percebo que isso torna a vida mais saudável. Então, vivo sem preocupações e nem tenho insônia. Costumo dizer que deito e durmo como um anjo. Aliás, sempre tive muita disposição para tudo, fui presidente do Rotary Club em 1964 e 1965 e da Associação dos Expedicionários, em 1968, 1970 e 1972.

O Diário – Do que o senhor tem mais saudades em Mogi?

Carvalho – Do ‘footing’ da Praça Oswaldo Cruz, no qual os homens andavam para um lado e as mulheres iam ao contrário. Foi lá que conheci minha esposa Haydee. Também sinto saudades dos bailes do Itapeti Clube, animados por grandes orquestras, e dos carnavais da Portuguesa, que ficava na Rua Dr. Deodato Wertheimer, onde só eram tocadas as modinhas antigas, como a inesquecível ‘Pierrô Apaixonado’. Agora, vou aos bailes da Melhor Idade do Clube de Campo, do qual sou sócio desde 1970. Sempre gostei muito de bailes e festas e, modéstia à parte, dizem que danço muito bem, assim como cozinho.

O Diário – Qual a especialidade do senhor?

Carvalho – Adoro fazer de tudo, principalmente pratos brasileiros, massas italianas, bacalhoada, galinhada, feijoada, estrogonofe e peixada. Aprendi a cozinhar porque tive restaurantes e precisava entender do assunto. Quando era necessário também chegava a colocar a mão na massa e fazia muitos cursos. Costumo cozinhar para os amigos e a família, sendo que aos domingos, se estiver fora de casa, gosto de voltar só para preparar o almoço.

O Diário – Qual sua maior alegria?

Carvalho – Chegar vivo da 2ª Guerra e participar da grande festa que fizeram para nos recepcionar. Em São Paulo, lembro que as moças nos abraçavam e beijavam e participávamos de bailes todas as noites.

O Diário – E a maior tristeza?

Carvalho – Ter visto meu amigo Alcebíades, que era do Mato Grosso, morrer ao meu lado, com um tiro na testa, na Guerra, sem que eu pudesse fazer nada. Isso é algo que não me esqueci jamais, assim como a morte do Hamilton Silva e Costa durante um dos combates que deixou mais nove prisioneiros da nossa companhia, em um monte de castanheiras chamado Braga de Garfanhano, onde havia um vilarejo nas proximidades. Foi uma batalha tremenda e escapei por pouco.

O Diário – O senhor avalia que falta maior valorização aos ex-combatentes brasileiros?

Carvalho – Antes, não tínhamos quase nada, mas com a Constituição de 1986, graças à uma emenda do Ulysses Guimarães, conseguimos uma pensão como segundo tenentes. No entanto, ainda falta um reconhecimento maior da mídia porque, na maioria das vezes, ficamos esquecidos. Todo último sábado de abril, por exemplo, vamos à festa realizada em Caçapava, que conta com um combate simulado no quartel, bem parecido com o clima da Guerra. Neste ano, a idéia é aproveitar a excursão para almoçarmos em Quiririm, onde há uma grande colônia italiana.

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